A Condessa Vésper - Aluísio Azevedo.pdf

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A CONDESSA VÉSPER
Aluízio Azevedo
 
AS MEMÓRIAS DE UM CONDENADO
 Uma noite, trabalhava eu no silêncio do meu gabinete, quando fui procurado por uma velhinha, toda 
engelhada e trêmula, que me disse em voz misteriosa ter uma carta para mim.
— De quem? perguntei.
— De um moço que está na casa de Detenção.
— De um preso?! Como se chama ele?
— V. S. vai ficar sabendo pelo que vem nesse papel. Tenha a bondade de ler.
Abri a carta e li o seguinte:
"Prezado Romancista.
"Apesar de nunca ter tido a honra de trocar uma palavra com o Sr., já o conheço perfeitamente por 
suas obras, e por elas lhe aprecio o coração e o caráter. Pode ser que me engane, mas a um rapaz, sem 
bens de fortuna e sem influência de família, que teve a coragem de reagir contra velhos preconceitos 
do nosso país, abrindo caminho com a sua pena de escritor transformada em picareta, e posta só a 
serviço dos fracos e desprotegidos, não pode ser indiferente à desgraça de quem se vê encerrado entre 
as negras paredes de uma prisão, sem outro companheiro além da própria consciência que o tortura.
"Sei que sou criminoso e mereço castigo — matei e não me arrependo de haver matado; matei porque 
amava loucamente, porque sacrifiquei alma coração e riqueza a uma mulher indigna e má. Entretanto, 
se incorri na punição da lei, não fiz, por merecer o anátema dos homens justos e generosos; minha 
vida deve inspirar mais compaixão do que desprezo por mim, e deve aproveitar como lição aos 
infelizes nascidos nas desastrosas circunstâncias em que vim ao mundo.
"Juro que ninguém foi mais leal, nem mais compassivo do que eu, juro que nunca sequer me passou 
pela mente a mais ligeira idéia de traição ou de fraude; quando, porém, cheguei a compreender até a 
que ponto de aviltamento e de degradação me arrastara o meu fatídico amor, quando toquei com a 
fronte no fundo do inferno da perfídia, da ingratidão e de toda a infâmia de que é capaz uma mulher, 
sucumbi de compaixão por mim próprio, e friamente arranquei a vida daquela por quem houvera eu 
sacrificado mil vidas que tivesse.
"Ao senhor, que conta apenas vinte e três anos de idade, e já conhece tão profundamente o coração 
dos seus semelhantes, não será com certeza indiferente a história do meu amor, nem lhe repugnarão as 
confidências enviadas deste cárcere, onde um desgraçado chora e padece, menos pelos remorsos do 
seu crime do que pelas saudades da sua vítima.
"O manuscrito que a esta carta acompanha, feito ao correr da pena sob a imediata impressão dos 
acontecimentos relatados é flagrante cópia da verdade, e só aspira servir de medonho espelho a outros 
infelizes, que se deixem como eu cegar por um amor irrefletido.
"Desse triste montão de gemidos esmagados em lodo, pode o seu engenho de romancista tirar uma 
obra que interesse ao público, substituindo, está claro, os nomes nele apontados por outros supostos. E 
quem sabe se o seu livro, uma vez posto em circulação, não irá ainda acordar nos corações singelos 
um impulso de condolência para com o pobre assassino por todos agora amaldiçoado?
"No meu manuscrito verá o senhor que sou eu o menos responsável pelo grande mal que fiz. O 
verdadeiro culpado foram os elementos em que se formou e desenvolveu o meu ser, foi o ardente 
romantismo em que palpitaram aqueles a quem coube a formação do meu temperamento e do meu 
caráter, foi a ausência de trabalho, foi a má educação sentimental, e foi o excesso de dinheiro.
"Hoje, que afinal me acho varrido para sempre da comunhão social e arredado daquelas fatais 
perturbações, reconheço que passei pelo meu tempo sem compreender, nem distinguir a feição do 
meio em que existi. Não vivi. Apenas vinguei para o egoístico repasto do meu deplorável amor. Fui 
nada mais que o tardio produto de uma geração moribunda, atropelado pelo choque de uma geração 
nascente e forte. Todavia, se eu não tivera sido tão negligentemente rico e tão erradamente amado pelo 
mísero sonhador que se encarregou da minha educação, é possível que não houvesse sucumbido ao 
choque das duas épocas, ou pelo menos não houvesse resvalado tão sinistramente na lobrega vala dos 
presidiários.
"Não estava preparado para receber o embate da onda, e caí. A onda passou adiante, e eu fiquei de 
rastros, para nunca mais me erguer.
"Enquanto nesta penitenciária lamento a inutilidade da minha vinda ao mundo, outros, que nasceram 
comigo, mas que, no esforço de cada dia e na luta pela conquista do ideal, aprenderam a ser fortes e 
vencedores, levantam além nos arraiais revolucionários, os seus vitoriosos estandartes.
"Mães! que concentrais vossa esperança no futuro de vossos filhos; pais! que pretendeis deixar um 
rico testamento ­ olhai para a minha vida, e considerai o perigo do dinheiro em excesso aos vinte 
anos, e o perigo, ainda maior, da educação romântica!"
Assim que a velhinha me viu terminar a leitura da carta, tirou de sob o xale um rolo de papéis, 
volumoso e sujo de tinta, que me entregou discretamente, saindo logo depois, a mastigar palavras de 
despedida.
Fechei de novo a porta do meu gabinete de trabalho, pus de parte o serviço dessa noite, e atirei­me de 
corpo e alma ao manuscrito.
Li­o todo.
Ao devorar a última página, o sol das seis horas da manhã invadia­me a casa pela ampla janela que eu 
acabava de abrir, enquanto uma funda melancolia e uma piedosa amargura me assaltavam o coração.
Tateei os olhos, e os meus dedos voltaram relentados de pranto.
As confidências do pobre assassino deixaram­me em extremo comovido. Eram uma torrente 
vertiginosa de episódios dramáticos e originais, em que toda a miséria humana se estorcia 
convulsionada, ora pela dor, ora pelo prazer, mas sempre de rojo o na mesma lameira de lágrimas 
ensangüentadas.
Não hesitei, tomei da pena e escrevi o livro que se segue, para mostrar ao meu leitor quanto é perigosa 
a beleza de uma mulher do jaez da Condessa Vésper, posta ao mau serviço do egoísmo e da vaidade.
I
O NAMORADO DA NOIVA
 
Nos fins de um verão que já vai longe, uma carruagem, de cúpula erguida e faróis apagados, seguia a 
todo o trote pela pitoresca estrada da Gávea.
Seriam onze horas da noite.
À certa altura, no lugar mais sombreado do caminho, a carruagem parou, e dela se apearam dois 
sujeitos vestidos de casaca. O mais velho destes, que teria o duplo dos vinte anos do outro, pagou ao 
cocheiro, e logo que o carro tornou por onde viera, puseram­se os dois apeados a caminhar 
silenciosamente pela estrada acima.
Ao cabo de alguns minutos, o mais velho, percebendo que o companheiro chorava, estacou, 
sacudindo­lhe o braço:
— Então, Gabriel! não tencionas acabar com isso por uma vez? Olha, que sempre me saíste um 
romântico ainda mais doido do que eu! E batendo­lhe no ombro: Ora vamos, meu rapaz! não te deixes 
agora dominar tão estupidamente por uma paixão quase ridícula! O que por aí não falta são mulheres 
tão lindas ou mais do que a filha do comendador Moscoso, e tu, por bem dizer, ainda nem principiaste 
a gozar a tua mocidade. Para mim é que toas elas já não existem... Vamos! se continuas desse modo, 
acabarei por te não tomar a sério!
O mais moço não respondeu, e continuaram os dois a caminhar em silêncio.
No fim de nova pausa, acrescentou o mais velho, sem interromper o passo:
— Que diabo! quiseste a todo o transe assistir ao casamento de Ambrosina... não te contrariei, apesar 
de me parecer isso disparada loucura; exigiste que eu te acompanhasse... eu cá estou ao teu lado; 
declaraste que entraríamos misteriosamente na casa dos noivos à meia­noite, como dois gatunos... eu 
não respinguei palavra!... (E sacando do relógio) São doze menos um quarto... A chácara do 
comendador fica­nos a poucas braças... e o cocheiro que nos trouxe roda a estas horas longe daqui, 
sem saber quem conduziu no seu carro... Parece­me, pois, que anui a todos os teus caprichos; 
entretanto, tu, o herói desta complicada aventura, tu, que me prometeste te portares como homem, que 
juraste não soltares um gemido de dor ou de queixa, desatas agora a chorar como uma mulher! Ah! 
deste modo, meu caro, não contes comigo!... Prefiro até desistir da viagem que combinamos fazer à 
Europa, sob a condição de acompanhar­te eu nesta romântica empresa; desisto de tudo!
— Gaspar!
— Pois não! retrucou este, estacando de novo no meio da estrada. Se continuas assim, está claro que 
não obterás de mim um passo adiante!
— Irei só! declarou o outro, enxugando os olhos.
— Para fazer­te a vontade, prosseguiu aquele, tive que reagir contra os meus hábitos e até contra o 
meu caráter; não te é nada estranho o mortal e velho ódio que mantinha contra meu pai, o pai de 
Ambrosina, esse infame comendador Moscoso, a quem eu, como toda a gente honrada, desprezo e 
detesto... Pois bem; não me arrependo do que fiz, e estou por tudo que quiseres, mas, com a breca! 
exijo por minha vez que, ou tu te hás de portar como homem, ou agora mesmo, desistas de tal idéia de 
ir hoje à casa da noiva! Lá para lamúrias e pieguices de namorado infeliz, é que absolutamente não 
vim disposto! Vamos! é decidires!
Gabriel passou­lhe o braço em volta do pescoço, exclamando:
— Não me recrimines, meu bom amigo! Sei quanto te devo, e sei melhor que o teu coração é o único 
de que ainda não descri inteiramente; mas, por isso mesmo, não me abandones, não me deixes a sós 
com este desespero, que só espera pela tua ausência para me devorar. Fica ao meu lado... eu me farei 
forte, eu terei coragem! Hei de vê­la aparecer, enlevada no seu véu nupcial, branca e fugitiva como a 
nuvem que se some para sempre; hei de vê­la, coroada de flores amorosas, as faces enrubescidas de 
sensual enleio, os olhos fulgurantes de desejo por outro homem!... e não soltarei um lamento, e não 
proferirei uma blasfêmia! Inveja, decepções, mortíferos ciúmes, tudo me ficará cá dentro, premido e 
recalcado com os escombros do meu pobre amor! Tudo sofrerei, vencido e humilhado, contanto que 
ma deixem ver hoje, contanto que me deixem penetrar, pela última vez, da suprema luz daqueles olhos 
ainda de virgem, e aperceber minha alma com a imagem dela, antes que ela se despoje eternamente da 
sua castidade! Depois, farei o que quiseres... fugiremos para longe do Brasil... tomaremos o primeiro 
paquete para a Europa... percorreremos o mundo inteiro, abriremos uma ruidosa vida de prazeres e de 
perigos! teremos amantes em todas as cidades, orgias e duelos em todas as paragens; mas, por 
piedade! deixem­me ver Ambrosina, antes que ela resvale nos braços do miserável que ma roubou! E 
tu, meu bom Gaspar, não me abandonarás, não é verdade?... tu continuarás a ser para mim o mesmo 
amigo fiel, o mesmo inseparável irmão, o mesmo extremoso pai!
O outro apertou­o contra o peito.
— Sim, sim... respondeu comovido; bem sabes que sim! Serei sempre o mesmo, não para te deixar 
correr à solta, como um boêmio, por esse mundo afora, mas para despertar em ti o gosto pela vida real 
e pelo trabalho fecundo... Olha! já daqui se avista a chácara do grande velhaco. Deitam fogos! Deve ir 
animado o bródio! Mas vê se me compõe um pouco esse teu ar, homem! Não sei que parecerás aos 
folgazões com essa cara de carpideira de velório!
E, à proporção que se adiantavam, iam já sentindo com efeito avultar­se no ar um quente rumor de 
festa que ferve ao longe; ao passo que em torno deles vinha, do fundo negrume daquela noite sem 
estrelas e sem lua, um monótono coaxar de charco e um agoureiro corvejar de aves sinistras.
Os dois amigos chegaram defronte da bela chácara do comendador. O mais velho bateu no ombro do 
outro:
— Vê lá como te portas, hein!...
E, embrenhando­se pelo empavezado jardim, galgaram depois uma escadaria de granito, que dava 
para sombria e vasta varanda, trasbordante de roseiras em flor; transposta a qual, se acharam eles num 
luzido salão, ainda quente de estrondoso banquete que aí ardera durante a noite.
Via­se ao centro a grande mesa, devastada e abandonada, como um campo depois de medieválica 
peleja a ferro frio, e, no meio, do destroço, dominante, e altiva, erguia­se intacta, numa apoteose de 
açúcar e fios de ovos, uma noivazinha de alfenim, coroada de áureos caramelos e vestidas de papel de 
seda.
Essa ridícula boneca, que se poderia derreter com um bochecho d’água, representava, entretanto, ali, 
naquele centro burguês e pretensioso, nada menos que a instituição mais respeitável da sociedade, 
representava a família. Naquele alfenim, frágil, cândido e consagrado, havia a doçura do lar 
doméstico, toda a pureza do amor conjugal e também toda a fragilidade da honra de um marido.
No meio do geral desbaratamento das vitualhas e dos postres, a simbólica boneca fora respeitada, por 
damas e cavalheiros, como ídolo divino.
Gabriel teve vontade de despedaçá­la.
Já quase ninguém havia no salão do banquete. Tinham­se os convivas despejado pelas outras salas e 
pelo jardim, cuja luminária à veneziana começava a derreter­se; alguns coziam a digestão refestelada 
pelas poltronas e pelos divãs macios; outros bebericavam ainda aos bufetes e faziam brindes, sobre a 
posse, à ventura dos cônjuges. A festa, que havia começado desde a véspera, tocava afinal no seu 
término e dissolvia­se em cansaço.
Gaspar e Gabriel conseguiram, sem chamar a atenção de pessoa alguma, chegar a um aposento mais 
afastado, onde se não via viva alma.
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